sábado, 26 de outubro de 2013

Zé Buneco e Eu



Havia algo de delicioso nos apelidos que recebíamos na infância. Não o apelido fixo, mas aqueles momentâneos, para extravasar um sentimento qualquer contra o infeliz  apelidado. Um xingamento, na verdade.

Naquelas ocasiões, minha mãe costumava nos chamar com o nome de alguém, com o qual tínhamos alguma semelhança. Algumas destas semelhanças poderiam até  ser positivas, mas no geral, eram semelhanças que nos denegriam mais e mais... Claro, ela nos chamava pelo nome daquela pessoa, sempre em um momento de raiva, de impaciência ou desconforto com alguma travessura ou coisa assim. Nunca vinha em tom de elogio.
Quando queria ser elogiosa, poderia nos chamar de  'carneirinho", "zói de biba" ou mesmo "minhas flores", mas nunca de "comadre Fulana" ou "compadre Ciclano de tal... "

E naquele tempo ser criança era,  aos olhos de um adulto, ser um atraso de vida, um ser incompleto, um fardo querido, mas um fardo. Um trabalho danado. Quanto menor, mais desprezível. Éramos os últimos dos moicanos. Não é como hoje em que a criança é o reizinho do pedaço.

- Esse Zé Buneco ainda não foi varrer a casa?

Havia um detalhe que tornava esse apelido-xingamento ainda mais assustador: mantinha-se o gênero masculino ou feminino do apelido, independentemente do sexo da criança. - O Zé Buneco já arrumou a cozinha? E olha que eu era uma menininha...

Só mais crescidinha vim a saber porque EU era o Zé Buneco: eu dava gargalhadas como ele, sonoras, longas e certamente até fora de propósito. Achei lindo demais o paralelo e para decepção geral fiquei orgulhosa da honraria. Procurei aperfeiçoar as gargalhadas dele. Assim, mesmo que o motivo do riso já tivesse esfriado, eu o emendava, rememorava algo ainda mais engraçado e continuava a sonora gargalhada. É como quando você está chorando e aproveita para rememorar fatos idos dolorosos, encampa tudo no pensamento e aumenta o volume e a densidade  do choro, de forma a causar mais impacto no universo ou no incauto causador do nosso infortúnio.

Mas, quem era Zé Buneco? Eu me lembro vagamente desse cidadão solitário, sentado ao sol no terreiro, de chinelos e umas ceroulas brancas amarradas, meio cerca-frango,  que deixavam antever seus finos e brancos tornozelos. Dizem que ele ficou lá sentado e foi esmorecendo, esmorecendo, esmorecendo e amarelando até morrer.  Talvez de melancolia. Mas antes, era notório por dar grandes gargalhadas e ficara conhecido por adorar funerais, onde sempre havia muitas pessoas, comida, bebidas, colocava-se os assuntos em dia e ainda podia ver muitas moças bonitas, quem sabe candidatas a um matrimônio tão sonhado. Certa vez teria dito "você não foi ao funeral de fulano? ah! perdeu. Foi o melhor de todos! Eta!"
Eu não ouvi suas gargalhadas; nem sei sei se ele era alegre. Talvez fosse apenas um velhinho triste que gargalhava.

Gabriel Garcia Marques  no livro Cem Anos de Solidão, fala de uma mulher, cujo riso explosivo espantava os pombos do terreiro. Acho que a nossa era um remedo dessa gargalhada. Digo nossa, a minha e a de Zé Buneco.


Engraçado, quando cresci, me lembro que minha mãe ficava tão feliz quando me ouvia rir. Ela dizia que tudo ficava alegre. E ríamos juntas.


Foi aí que descobri que ela também sabia gargalhar igual a mim e ao meu ídolo, Zé Buneco.

Doces lembranças. Uma pitomba, pelo amor de Deus!!!



                                             Velhinho Triste - Vincent Van Gogh


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