domingo, 27 de outubro de 2013

Conversa de cobras



Eu queria lhe falar da conversa de duas cobras. Uma era a Jurema.
Cuidado, conhece alguém com esse nome? não! ninguém.
E a outra? A outra cobra é a Filomena Maria.
Amiga, tem certeza de que realmente não conhece ninguém com esse nome???
Hum... um momento... É,  conheci uma Filomena. Nutricionista. Me lembro agora. Fez um corte de cabelo curtinho, joãozinho, 'a la garçonne' e para meu desgosto meu marido apreciou. Ele disse a ela bem sorridente e entusiasmado: "pareces uma francesinha"! Que ódio! Acho que a decapitaria...
Portanto são Jurema e Filomena as duas cobras em questão. Ponto. E não utilizarei travessões nos diálogos das duas víboras, à moda de Saramago, para não dar folga à inteligência do leitor.

Deu-se que Jurema estava em crise existencial.  À falta de um terapeuta, desabafava com a amiga.
Sabe Filomena, não vejo mais nenhuma graça naquilo que mais me atiçava a vontade de viver. Os anos me deixaram tão eficiente no bote que já não me excita mais abater uma simples presa. Estou entediada. É isso. Roedores assustados não me parecem mais um manjar apetitoso.
Simples, Jurema, você precisa de algo que desafie sua incrível capacidade, novos níveis de...
Pare. Isso está me cheirando a auto ajuda, clichês de suas postagens no Facebook!
Nada disso: eu leio Schopenhauer, Nietzsche e Kierkegaard , esqueceu? invista em algo acima de suas expectativas normais. Esqueça pequenos roedores e pássaros indefesos do seu jantar e parta para novos desafios.
Tipo?
Repare naquele humano, de terno e gravata -  acho que Armani, teclando sem parar seu iPad...isso sim, seria excitante, inocular seu doce veneno em seu calcanhar...
Interessante. Mas o problema é que a priori,  não vejo nele nenhum mal. Está imerso em sua rede virtual... me parece ser advogado, pode estar redigindo uma petição...e desde quando teclar ou usar Armani justifica um ataque, Filó?
Minha filha, é da nossa natureza atacar, se não para garantir o almoço, pelo simples prazer de ferir o próximo!
Alto lá: venho de uma estirpe de cobras politicamente corretas que só mordem para se defender de um iminente ataque ou para garantir o almoço ou um lanchinho frugal. Fora isso, somos uns amores. Muitos humanos nos amam como animais de estimação, sabia?
Quantos escrúpulos, flor! meu inesquecível Tião - ah, eu viveria por ele, com ele, debaixo dele, pela eternidade ai, ai -  costumava dizer que o prazer do ataque é inenarrável!
Grande filósofo o seu querido Tião: morreu decapitado sob uma enxada!
Não é justo que me lembres disso agora! E saiba que um filósofo não tem que viver necessariamente sob sua própria doutrina!
Ah,  não?!
Não! Um grande psicanalista infantil lançou ideias pioneiras e no entanto sabe-se hoje que ele maltratava criancinhas deficientes sob seus cuidados. E veja bem, seus conselhos virtuosos e certeiros  dão ótimos resultados no tratamento dessas crianças. Ele é seguido por todos os humanos de bom senso.
Quem é ele?
Não vou citar o nome para evitar processo por parte dos herdeiros.
Tá, mas me poupe de tanta filosofia...eu preciso de um algo mais que justifique meus atos. Não vou inocular o 'Armani' apenas porque ele tecla sem parar o tal  iPad, iPod, iPhone, seja o que for. Pelo que sei,  estas tecnologias foram criadas para aproximar os humanos na era da globalização.
Aproximar? tudo que ele fica sabendo é o que a tia fez para o almoço,  onde vai ser a balada, quem tá pegando quem e esses clichês ensinando a ser por demais feliz  no dia a dia. Ah, me poupe! Freud, um humano que tantos admiram já havia dito que "A felicidade é um problema individual. Aqui nenhum conselho é válido". Tudo inútilSeu Armani não merece ser poupado, criatura!
Hum...
E veja bem, temos um nome a zelar. Desde o Paraíso que nosso papel foi definitivamente reconhecido. Se nossos ancestrais não tivessem feito a cabeça da Eva, queridinha, não existira eu, você, Cristiano Ronaldo, nem nada!
Estou ligando os pontos, como falou o Jobs, o criador destas coisas...
Então, se não é pelo simples prazer de picar,  pelo almoço ou pela legitima defesa, que seja pelo uso abusivo do iPad!
Agora sim, amiga, você clareou as coisas. Estou empolgadíssima com este novo desafio. O Armani que me aguarde.

As cobras são mesmo muito ardilosas e têm bons argumentos... desde o princípio dos tempos.


                                   

sábado, 26 de outubro de 2013

Zé Buneco e Eu



Havia algo de delicioso nos apelidos que recebíamos na infância. Não o apelido fixo, mas aqueles momentâneos, para extravasar um sentimento qualquer contra o infeliz  apelidado. Um xingamento, na verdade.

Naquelas ocasiões, minha mãe costumava nos chamar com o nome de alguém, com o qual tínhamos alguma semelhança. Algumas destas semelhanças poderiam até  ser positivas, mas no geral, eram semelhanças que nos denegriam mais e mais... Claro, ela nos chamava pelo nome daquela pessoa, sempre em um momento de raiva, de impaciência ou desconforto com alguma travessura ou coisa assim. Nunca vinha em tom de elogio.
Quando queria ser elogiosa, poderia nos chamar de  'carneirinho", "zói de biba" ou mesmo "minhas flores", mas nunca de "comadre Fulana" ou "compadre Ciclano de tal... "

E naquele tempo ser criança era,  aos olhos de um adulto, ser um atraso de vida, um ser incompleto, um fardo querido, mas um fardo. Um trabalho danado. Quanto menor, mais desprezível. Éramos os últimos dos moicanos. Não é como hoje em que a criança é o reizinho do pedaço.

- Esse Zé Buneco ainda não foi varrer a casa?

Havia um detalhe que tornava esse apelido-xingamento ainda mais assustador: mantinha-se o gênero masculino ou feminino do apelido, independentemente do sexo da criança. - O Zé Buneco já arrumou a cozinha? E olha que eu era uma menininha...

Só mais crescidinha vim a saber porque EU era o Zé Buneco: eu dava gargalhadas como ele, sonoras, longas e certamente até fora de propósito. Achei lindo demais o paralelo e para decepção geral fiquei orgulhosa da honraria. Procurei aperfeiçoar as gargalhadas dele. Assim, mesmo que o motivo do riso já tivesse esfriado, eu o emendava, rememorava algo ainda mais engraçado e continuava a sonora gargalhada. É como quando você está chorando e aproveita para rememorar fatos idos dolorosos, encampa tudo no pensamento e aumenta o volume e a densidade  do choro, de forma a causar mais impacto no universo ou no incauto causador do nosso infortúnio.

Mas, quem era Zé Buneco? Eu me lembro vagamente desse cidadão solitário, sentado ao sol no terreiro, de chinelos e umas ceroulas brancas amarradas, meio cerca-frango,  que deixavam antever seus finos e brancos tornozelos. Dizem que ele ficou lá sentado e foi esmorecendo, esmorecendo, esmorecendo e amarelando até morrer.  Talvez de melancolia. Mas antes, era notório por dar grandes gargalhadas e ficara conhecido por adorar funerais, onde sempre havia muitas pessoas, comida, bebidas, colocava-se os assuntos em dia e ainda podia ver muitas moças bonitas, quem sabe candidatas a um matrimônio tão sonhado. Certa vez teria dito "você não foi ao funeral de fulano? ah! perdeu. Foi o melhor de todos! Eta!"
Eu não ouvi suas gargalhadas; nem sei sei se ele era alegre. Talvez fosse apenas um velhinho triste que gargalhava.

Gabriel Garcia Marques  no livro Cem Anos de Solidão, fala de uma mulher, cujo riso explosivo espantava os pombos do terreiro. Acho que a nossa era um remedo dessa gargalhada. Digo nossa, a minha e a de Zé Buneco.


Engraçado, quando cresci, me lembro que minha mãe ficava tão feliz quando me ouvia rir. Ela dizia que tudo ficava alegre. E ríamos juntas.


Foi aí que descobri que ela também sabia gargalhar igual a mim e ao meu ídolo, Zé Buneco.

Doces lembranças. Uma pitomba, pelo amor de Deus!!!



                                             Velhinho Triste - Vincent Van Gogh


Perguntas



Se pudesses adentrar meu ser
E como uma nanopartícula ou um Deus
Cada átomo, cada célula percorrer
E descobrir todos os segredos meus?

Poderias vasculhar cada inquietação de minh'alma
Ouvir cada desalinho do meu pensamento,
Conhecer minha ansiedade e minha calma
Minhas angústias e descontentamentos
Sentir a rosa e o cravo e nenhum jasmim
Me amarias ainda assim?



terça-feira, 22 de outubro de 2013

Eu vi você triste







Eu vi você triste
Não sabia que era sua última tristeza
Uma tristeza serena, de quem está em paz

Eu vi você  pensativo
Não sabia que eram seus derradeiros pensamentos
Pensamentos serenos, de quem está em paz

Eu vi você triste
E foram tantos anos alegres
Mas só me lembro de te ver triste
Era o dia de sua partida

Eu vi você partir
Para o único lugar onde não posso estar
Mas me espere,  em colinas verdejantes
Um dia vamos caminhar...


(Em memória do falecimento do meu esposo Paulo Augusto, em 22/10/2005)














sábado, 12 de outubro de 2013

Palavras



Se quero falar contigo
As palavras não me obedecem
Voam para longe de minha lógica,
Procuro-as e não as encontro;
Se as encontro, não consigo aprisioná-las
São potros selvagens zombando de mim

Contigo, as palavras fizeram um pacto
Estão ao teu inteiro dispor
Pousam em teu poema como borboletas em uma rama;
De leve, sem esforço, inda que rimando flor e dor
As palavras são tuas súditas
Ao teu comando, enviam teu beijo, teu temor ... e se calam.
Deixam no ar lembranças de um tempo que não volta mais
Breves promessas de amor, incertezas, medos... e silêncio

Quisera eu comandar as palavras
Iria ordená-las em um poema generoso
Um poema que apagaria todas as marcas
Das durezas de nossas vidas
E te faria ver teu pequeno rio
desaguando no mar...
Apenas quisera.