quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Pensamentos Caboclos (I) - José Martim


No topo das colinas a névoa branca cobre tudo de mansinho, mais e mais. E "névoa na serra é chuva na terra",  já diziam os antigos, assim como "névoa na baixa é sol que racha". São só crendices.

Na estrada sinuosa de terra vermelha, José Martim vai a passos largos cumprindo a distância de oito léguas que separa a sua choupana da pequena vila de Abadia.  Vai buscar remédios para o filho do meio que ardeu em febre durante toda a noite e não deixou ninguém dormir. De preocupações e de cuidados. Coitada da Rosário, passou a noite em claro.

É preciso apertar o passo. As pernas cansadas não ajudam, mas o tempo urge. 

Os pensamentos chegam como pássaros em revoada, alguns pousam, se abancam e não têm hora de partir. Almoçam, merendam e jantam e se deixar, dormem conosco. Moram conosco. Ficam para sempre. Outros sobrevoam, chegam a dar um cumprimento  - bom dia seu moço - e se dispersam neste mundão de Deus sem deixar vestígios. O pensar não toma jeito.

"Ah, o pensar. Deus lá em cima sabe de tudo e vigia até os pensamentos. É aí que ele tem uma aliança com os homens. Com os homens todos. Até comigo.  Mesmo eu, um simples lavrador, de alpercatas, sem direito à terra própria, sem eira nem beira, iletrado, tenho direito à solidão do meu pensamento, falado só com Deus. Mas terá Deus tempo para as pessoas mais simples, como eu que não disponho da sabedoria para entender os meandros deste mundo? Dizem que tem. Ele está em todo lugar, sabendo de tudo. O que me intriga mais é entender o começo de tudo isso. Das ruínas, das dores dos homens, do acerto de contas, do juízo final. Para que criar uma coisa torta, mandar endireitar e castigar se ela não se endireita? Não seria melhor criar logo a coisa certa, a criatura do bem? É, vai que ele só criou e deixou o homem decidir para que lado anda...sei não. Se deixou por conta do homem, no meio do caminho ele entortou, que nem fez Adão. Só se foi isso.

Estou pagando alguma coisa? Não matei nem roubei. Isso eu sei. Tive rancores... Sei de mim que os rancores que tive não vieram de graça. Foram cozinhados no fogo brando dos outros. Será então que a desgraceira dessa vida são sempre os outros? Pode até ser, mas eu não posso existir sem o outro.

Dizer que Ele distribuiu com igualdade as desgraças e a felicidade é bonito demais mas não parece fazer muito sentido quando se mira no alheio. Hã-hã. Mas de fato tem umas alegrias que Ele deixou ao largo para qualquer um. Até para mim! Que seja uma risada verdadeira, um filho descobrindo o segredo das coisas, o vento macio batendo no rosto, o corpo quente de Rosário...É... mas aquele que muito tem,  olha mais adiante, quer muito mais e não pode ver o que já tem de jeito nenhum. Que já está bom demais. Isso é que não. Mereço mais e mais,  é o que pensa o sujeito.

A Professora Altamira disse que eu penso demais e que a vida não se explica com tantos pensamentos. Que ela é simples. Que Deus fala é através das coisas todas que vemos, das borboletas, das plantas todas, das águas que correm sem cansar não sei para onde. Ela tem muita sabedoria, uma sabedoria diferente. Diferente também é a alegria das pessoas. Elas se alegram por coisas diferentes. Aquilo que é uma alegria para mim, pode não fazer sentido algum para outro. O que para mim é uma benção pode parecer para Sr. Virgílio como nada mais que uma obrigação de Deus para com ele. É assim mesmo. Minha alegria maior agora é  chegar logo à cidade, achar o farmacêutico e trazer o remédio para curar meu menino do meio. Esse é o sonho do momento.

Eu tinha sonhos, não aqueles de grandeza do meu falecido irmão que levantou voo para a cidade grande, mas sonhos de pobre, o senhor sabe, umas miudezas aqui, outras acolá. Uma casa melhor, com água na pia para a Rosário não ter que carregar balde, coisas assim. O chão de terra batida não me incomoda, está sempre fresco que a Rosário é muito asseada. Mulher de grande valor. Eu queria dizer a ela " eu te amo", como dizem as pessoas instruídas, mas isso nem combina comigo. Seria difícil demais de dizer.  Ela também não saberia ouvir isso nem nunca  me disse coisa igual. Nunquinha. Mas o compadre Ramiro já me disse que o amor não precisa ser dito, é nos gestos que está dito. Compadre Ramiro estudou até no ginásio dos padres, sabe de muitas coisas."

Na curva da estrada se aproxima uma caminhonete levantando poeira com aquele cheiro bom de gasolina e pneus. Deve ser Sr. Virgílio que ruma para além da vila de Abadia, levar os meninos para o colégio no Seminário de Cristo Jesus. " - Sobe aí atrás Seu José! Vamos economizar as pernas. Indo para onde?"

"Que sorte das grandes é a minha. Agora sim,  eu chegarei mais rápido. Meus pés cansados serão poupados, meu filho doente receberá seu remédio mais rápido e se Deus permitir vai ficar são.

Era como um sonho poder atravessar aquelas colinas empoeiradas deslizando como se estivesse no céu. Deve ser assim no céu. Deslizando de um lugar para outro sem esforço, sem cansaço, com o vento batendo no rosto, deve ser assim para todos. Carroceria de caminhonete para todos. Só que Sr. Virgílio achava natural. Mesmo a boleia. Para mim era um sonho. Eu estava indo como quem estivesse no céu."
O céu de um pobre lavrador.

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