sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Memórias de um velho Jatobá ( A Passagem Do Tempo )


Meus frutos não são doces como os frutos da mangabeira, têm cheiro estranho, poupa empoeirada e gruda nos dentes. Um horror. O horror. Só crianças se aventuram... e poucos tiveram a audácia de tentar me escalar, ainda que fosse somente até meus primeiros galhos. Sou grande. Meu maior orgulho mesmo é ser a principal testemunha do tempo em uma velha fazenda, a Fazenda Velha,  perdida nos confins das Gerais.

Por estas bandas vi passar um escravo fugido de seus  senhores, caçado como fera, com os pés descalços em carne viva, comendo raízes amargas para matar a fome do corpo, se esgueirando para longe do cabresto buscando matar a fome de liberdade da alma. Vi os olhos impiedosos de seus caçadores. Ele tinha pepitas de diamantes em um embornal e as enterrou onde só meus olhos viram e ninguém ainda encontrou...

Vi as gentes chegarem com seus sonhos, suas enxadas e suas foices. Tinham suor no rosto, calos nas mãos e sonhos de uma vida melhor. Não sabiam que a vida seria curta e que a dor é uma companheira que não se menospreza. 

Ouvi os gritos das mulheres que pariam seus filhos de cócoras e ouvi seus risos felizes quando podiam, passado o desespero, comer uma galinha de parida e beber cachaça da boa, batom vermelho nos lábios vaidosos,  com um novo bebê embrulhadinho dormindo ao lado. É um menino? Melhor que seja. Mulheres sofrem muito. Mal sabiam que o sofrimento, depois do pó, é a mais democrática de todas as coisas do mundo: está distribuído igualmente para todos.

Ouvi o choro dos que ficaram inconformados com a partida dos entes queridos, tão cedo,  tão antes da hora.Com tantos compromissos e filhos.  Eles não entendiam ainda que a hora não seria de sua escolha e na noite escura fui testemunha de suas lágrimas.

Vi luzes no meio da noite, qual bolhas de sabão fosforescentes, várias, bailando a um metro do solo sob o abacateiro e duas meninas assustadas correrem para dentro de casa se perguntando - e se perguntam até hoje - que luzes seriam aquelas. Só eu sei, mas são segredos que não posso revelar. 

Um dia chegou o rádio e com ele os festivais. Minha gente cantava e torcia pela Banda de Chico Buarque. E podia até valsar ao som do Baile da Saudade...E ouvindo os acordes do The Animals, podiam até sonhar com a Casa do Sol Nascente em New Orleans...Tão longe e tão perto. 
Agora eles tinham um elo com todo o planeta. Sabiam também das tragédias daqui e de muito longe, de Belfast ao Vietnã,  de Israel ao balaço de Dallas que ceifou a vida do presidente bonito e ainda podiam ouvir a   música dos Beatles. 

Vi os amantes e seus amores proibidos que sob minha generosa sombra trocavam suas juras eternas, se amavam sobre a relva e se permitiam sonhar. Ouvi seus gemidos de prazer e de dor. A dor da separação.

E sob minha sombra, eu vi um grupo de músicos afinando seus instrumentos por horas a fio, enquanto todos esperavam  ansiosos pela Folia de Reis. Era um tempo claro e bonito. Havia alegria no ar e uma menina vestida de índia a dançar.

Vi crianças que temiam a noite, quando assombrações vivas e  mortas tentam entrar pelas suas janelas. E juntos, no meio da noite,  nós vimos uma alma penada toda vestida de branco que seguia lentamente com sua bengala atravessando o canavial. Era noite de lua clara. 

Eu vi uma menina fazendo seus três pedidos a uma estrela cadente. Não me pergunte quais pedidos foram. Apenas digo que ela foi em busca das respostas. Estavam nos seus livros? não sei. Havia livros e livros levam as pessoas para muitos lugares. Maldito Khalil Gibran, carregastes minha gente.

Um dia vi minha gente partir para nunca mais voltar. E se alguma vez vieram a passeio,   não os pude reconhecer; não eram os mesmos que partiram. Falavam de assuntos estranhos para mim, às vezes nem mesmo um olhar me dirigiam. As gentes são assim: não param, buscam sempre algo que está mais longe, enquanto eu, silencioso e mudo, tudo vejo sem julgamentos, apenas testemunho o passar do tempo. Porque julgamentos são para o Criador, que viu tudo desde o princípio. Quanto a mim, tenho apenas quinhentos anos e não sou juiz da minha gente.

Vi os córregos secarem. Não há mais os belos irmãos ingazeiros debruçados sobre a água, soltando seus frutos na corredeira...não há mais crianças se banhando em algazarra no poço que foi feito só para elas. É o "Poço que Ed fez" antes de partir. Não há mais o cheiro de refogado no ar, a fumaça das chaminés, o engenho na madrugada e a garapa gelada. Não há mais os piqueniques... 

Vi minhas queridas irmãs, árvores menores que eu, serem decepadas, divididas em toras para servir de móveis ou caixões para minha gente enquanto eu sobrevivi pela minha força, por ser demasiado grande. Tão grande, que seriam necessários pelo menos três homens feitos para me abraçar o tronco. Tão imponente que fui até motivo de disputa entre vizinhos. Aquela outra gente queria que a cerca fizesse uma curva, só para me incluir em sua propriedade. Isso é que não. Sempre fui fiel a minha gente, aquela que me amava e sonhava erguer sob minha sombra um túmulo para seus mortos. Quem sabe um dia os reencontro. Aqui estarei esperando ...

Hoje, do alto de meus quinhentos anos, nada pode me assombrar. Ainda posso ver as estrelas cadentes, mas não ouço nenhum pedido. E vejo a lua cheia e nenhum beijo ao luar...E a minha gente segue sonhando por esse mundão de Deus.

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(Foto: Jatobazeiro da Fazenda Velha)
by Aparecida Duque - jul/09

The Animals - House of the Rising Sun


















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